Autorretrato de mulheres com deficiência:
olhar de dentro, olhar de fora
#11
episódio
Título: Autorretrato de mulheres com deficiência: olhar de dentro, olhar de fora
Data de publicação: 25/2/2022
Cocriação: Gislana Vale e Olivia von der Weid
Cidades/UF: Fortaleza/CE e Rio de Janeiro/RJ
[vinheta]
Olga Aureliano: “Autorretrato de mulheres com deficiência: Olhar de dentro e Olhar de fora”. É o último episódio desta temporada de Retratos Defiças. Olivia Von der Weid e Gislana Monte fazem uma conversa sobre as dimensões poéticas e políticas da acessibilidade, em especial no campo cultural, tomando como ponto de partida as experiências que cada uma vem trilhando pelos estudos da cegueira e baixa visão.
[vinheta]
Gislana e Olívia: autorretrato de mulheres com deficiência: olhar de dentro e olhar de fora.
Olívia: Gislana é uma mulher negra, de pele não retinta, como ela costuma dizer, nordestina com sotaque cearense delicioso. Ela faz parte de uma roda vibrante de mulheres que lideram o coletivo muito potente e encantador, o Movimento Brasileiro de Mulheres Cegas e com Baixa Visão. Está fazendo doutorado em Psicologia na Universidade Federal Fluminense e é pesquisadora colaboradora do Conatos. Ela geralmente fala com a gente do escritório da casa dela, uma imagem que já ficou gravada na minha memória, onde aparece um pedaço de armário atrás, uma janela ao fundo, uma cortina esvoaçante e o sol de Fortaleza brilhando lá fora. Eu diria que Gislana é uma mulher de fibra, de fibra de linho, firme, resistente e ao mesmo tempo leve e flexível. Com essa fibra de que é feita, ela tece belíssimas e variadas paisagens existenciais do seu ser mulher.
Gislana: Olívia é uma mulher cis, branca, de olhos e cabelos castanhos, que fala da sua casa no RJ. Uma professora, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense. Pesquisa com as mulheres com deficiência visual, tece bordados com as nossas vidas; nos enreda e se enreda. Faz poéticas da cegueira, do saber viver e do saber ser, fala conosco, pensa conosco sobre a mágica do tempo do feminino, do sempre e do agora. É, uma vez eu vi uma fala, que a pessoa dizia assim: que quando você fotografa uma pessoa, é como se você colocasse a alma dela naquela foto, ela não tá só retratada, ela tá de algum modo colocada no sentimento. É assim instantâneo daquele momento, se for de alegria, por exemplo, ela vai estar sorrindo com uma expressão leve; se for de tristeza ou se for de apreensão, então a foto ela também registra esse lugar do sentimento. Ela não é só o lugar do registro da imagem. E aí tem uma coisa que eu fiquei pensando também pra as pessoas cegas e com deficiência visual, em geral, também pessoas com baixa visão. A gente se preocupa muito, em perguntar a pessoa, se a foto está boa. O que é uma foto que estar boa pra uma pessoa e pra mim? Por exemplo, pode ser que seja uma boa imagem, mas pode ser também que a pessoa esteja perguntando: “o que que está sendo retratado naquela foto?”. Porque, às vezes, a foto, ela não, ela não é uma foto, perfeita estruturalmente, mas ela é uma boa foto, daquele momento, né assim não?
Olívia: eu acho que tem muitas coisas interessantes aí pra nossa troca, né, de é referência assim de pensar o que que é uma boa foto, por exemplo, né? Se ela é em termos de enquadramento, né, significa o que que dá pra ver na naquilo que tá na foto. E se essa pergunta inclui isso, né, uma boa foto é uma foto em que a gente consegue ver que tá enquadrado, que a pessoa tá dentro daquele registro, né? Não tá com a mão pra fora da imagem, por exemplo, né, ou uma boa foto também, pode ser pensado em termos estéticos também, né, o que a pessoa tá bem na foto significa que ela tá bonita ou que ela tá sorridente, né, o que que seria também a beleza? É todo um conceito que a gente pode problematizar, né? O que que seria bonito, né, também assim. Pensando transposição disso, né, é uma coisa que eu vi na minha pesquisa de doutorado que sempre me instigou muito, e acho que isso também é o que me motivou a dar inclusive o título da tese... que a imagem ela não é só visual, né. Essa palavra imagem, a gente associa muito ao visual, né, mas a imagem pode ser uma série de coisas, múltiplas formas de registro que a gente tem das experiências, né. Ela pode ser uma imagem olfativa, pode ser uma imagem sonora, pode ser um, né isso que a gente tá provocando um pouco aqui também. Um registro de um retrato que não é visual, que é um retrato sonoro. E como é que seria então essa boa foto, bom, esse bom registro, essa boa imagem, né? Se a gente traz pra esse campo, né da, das múltiplas possibilidades que a imagem pode ter.
[efeito sonoro]
Nayara: eu sou Nayara, eu tenho 29 anos, sou uma mulher negra, de pele preta. Eu tenho os olhos pretos, cabelos pretos, os lábios grossos, sobrancelha fina. Eu tenho o nariz um pouco, meio feinho. O meu rosto, ele é fino, eu uso um batom da cor cereja, eu estou vestida de um short jeans, da cor escura. Estou com body da cor branca de alcinha, eu estou de óculos escuro, eu estou de brincos pratas grandes, estou com meus cabelos soltos cacheados na altura das orelhas. Eu tenho a orelha pequena e eu estou me preparando para ir à casa da minha irmã, porque aqui está um dia lindo e ensolarado. [efeito sonoro] Eu sou uma mulher negra, eu sou jovem, eu tenho 29 anos, meu nome é Nayara. Eu tenho baixa visão, eu faço tratamento na AFAC - a minha reabilitação, que eu tô indo em busca da minha autonomia, e na terça-feira foi um encontro maravilhoso, com pessoas maravilhosas, aonde eu me senti muito feliz ao encontro da Gislana. Eu estava com a Luzia, a Vanda, e foi um encontro maravilhoso, com as amigas. É muito importante o meu tratamento, a minha reabilitação, onde eu venho buscando a minha autonomia. Depois saímos da AFAC, nós fomos para um restaurante maravilhoso.
[efeitos sonoros de ondas do mar, vento e ambientação de praia, ao longo da próxima fala]
Nayara: olá meninas, é... eu sou a Nayara, eu acabei de tomar um banho, porque aqui no Rio de Janeiro, aqui em Niterói tá muito calor! Eu tô toda produzida... [vendedor ao fundo: olha o picolé!] querendo ir à praia. Eu estou em casa, mas estou com vontade de sair na praia, curtindo aquele mar azul, aquela brisa do mar batendo no rosto, aquele céu azul, aquele sol irradiante. Eu estou de biquíni, eu estou de batom vermelho, com umas argola prata, meu cabelo está amarrado pra cima; e eu estou no meu quarto de fone de ouvido branco. Estou com um biquíni, a cor do meu biquíni, a parte de cima é preto e a calcinha do meu biquíni na parte de baixo é todo de oncinha. Estou toda toda para curtir uma praia!
Olívia: a gente então, é... tá vendo esse álbum de retratos da Nayara, né. São 3 retratos, é uma sequência de 3 retratos, que vão nos conduzindo pra quem é essa mulher, né. É... nesse primeiro, a gente encontra Nayara fisicamente, né. Eu percebo, um pouco essa autodescrição dela bem detalhada do rosto. Pra mim é como se ela tivesse feito um retrato do rosto, principalmente, não sei se você tem essa impressão, Gislana.
Gislana: é. Ela vai definindo muito essas características dela, né? E assim, no modo como ela descreve, você percebe essa diversidade de possibilidades, porque, quando ela descreve, descreve o cabelo, ela fala do cabelo de uma mulher de um cabelo crespo, que é uma coisa muito forte numa mulher negra, a pele negra. E aí depois ela vai descrevendo outras questões. O rosto fino, a sobrancelha fina, o nariz largo e assim os lábios grossos. Ela vai construindo referências é... étnicas, eu, acho, raciais da formação que é muito essa coisa do Brasil, da pessoa brasileira que tem muitas nuances. É... raciais, de pertencimento mesmo da... nessa coisa de muitas misturas de raça, de etnia, eu acho que é um pouco, a gente vê isso quando ela fala nessa descrição dela.
Olívia: e ela faz bem detalhista, né? Eu fico imaginando, num paralelo, né com a fotografia... uma imagem de aproximada mesmo de rosto, né. Porque, ela entra no detalhe do rosto, entra no detalhe do relevo, dos lábios... tem textura pra mim, nesse retrato, né. Textura do nariz também, da forma do nariz, da forma dos lábios. Acho muito bonito isso, a maneira como ela vai num retrato falado, trazendo essa textura, né, do rosto.
Gislana: isso. Eu acho que ela dá mesmo esse zoom da fotografia no rosto, nas características. E ela fala devagar é como se ela fosse, ao mesmo tempo, percorrendo com as mãos esses lugares.
Olívia: exatamente.
Gislana: que ela vai informando, né? A gente tem essa sensação.
Olívia: e eu, enquanto falava pra você, dessa impressão do zoom aproximado e da textura, fiz o gesto aqui com a minha mão, de botar o dedo no meu rosto, no meu lábio. E você acabou de descrever exatamente isso, né, como se fosse percorrendo com as mãos.
Gislana: é.
Olívia: eu fiz o gesto nesse sentido assim, do nariz, né, de chegar pertinho. E a visão, essa visão do tato, que é esse olhar aproximado, né.
Gislana: eu acho isso também.
Olívia: [incompreendido] vai ficar muito bonito esse retrato dela. E depois ela no segundo retrato, ela já me traz uma paisagem mais existencial do momento que ela tá hoje, né? É... quando ela fala: “sou uma mulher de baixa visão, estou fazendo reabilitação, tô em busca da minha autonomia”; né, a gente já entra um pouco mais nessa, nesse lugar da subjetividade, né, nessa paisagem existencial, não sei, dela assim, né?
Gislana: no processo de construção de vida, acho que é isso. Porque às vezes, é... quando você pensa num retrato, você pensa num retrato que diz só daquele momento, mas quando ela se retrata nesse lugar, é como se o retrato dela se movimentasse pra um outro lugar. É como se ela fosse, é... tirando várias fotos de momentos e fosse colocando ali, seguidamente. Eu tenho essa impressão.
Olívia: é, e vai compondo, né, um cenário, um pouco mais amplo pra nós em termos de: “quem é essa mulher?”, né, e “qual momento de vida que ela tá?”, como você fala, né. Construção de vida dela. Agora também nesse momento de se reconhecer de um novo lugar, né. Como mulher com deficiência visual, em busca da sua autonomia e, ao mesmo tempo, nesse lugar de um convívio, né, que se abre todo um... todo um novo cenário de relações que ela encontra nesse momento da vida, né? Eu acho que essas mulheres que tão com ela nesse cenário, ela cita, né, algumas das mulheres, que fazem parte desse movimento - o Movimento Brasileiro de Mulheres Cegas e com Baixa Visão - fazem parte desse tempo da construção da vida dela, né.
Gislana: eu acho que isso é importante sim, até porque é... um retrato, às vezes, ele, ele dá uma dimensão muito solitária da gente, assim. Eu, naquele lugar, naquele território, naquele tempo. E ela vai é... fazendo um retrato, onde ela se acompanha de outras mulheres pra viver outros lugares, pra viver outros espaços, né. Eu acho que isso também enriquece muito essa fotografia que ela faz do tempo que ela tá vivendo.
Olívia: e outra coisa que eu acho bonita, que ela relaciona isso com a autonomia, né. E aí, a gente vê aí, uma noção de autonomia dentro dessa vivência, né, dela. Uma noção de autonomia que não é solitária, que não é sozinho, não significa fazer tudo sozinho, necessariamente. É uma autonomia que se constrói acompanhada. Não sei se isso... se isso fica pra, porque pra mim é relevante quando ela diz “autonomia”, e fala das amigas que tão com ela, junto nessa construção da autonomia. Então autonomia se constrói acompanhada, n]ao se constrói sozinha.
Gislana: é. O lugar do coletivo na vida dela, né. De se sentir pertencente, porque quando você faz uma fotografia, você faz num lugar, num tempo. E aí é... às vezes é na sua casa, às vezes é no seu trabalho, é no seu passeio, sei lá! Mas é um lugar onde você se sente pertencente ali, você está parte - pelo menos, momentaneamente - parte daquele lugar. E quando ela relaciona essa autonomia, com a participação das amigas, das mulheres que estão com ela, eu acho que ela dá esse entendimento. De que autonomia também se faz no coletivo.
Olívia: isso, eu acho isso muito forte, né. Autonomia tem a ver com participação, tem a ver com, né, fazer parte, pertencer.
Gislana: é isso.
Olívia: é uma ideia muito potente de autonomia é essa, né?
Gislana: é.
Olívia: é aí no terceiro cenário, a gente conhece também a Nayara que, que circula, né, circula em territórios, que circula na praia. Eu sinto nesse terceiro áudio, quase que o calor que ela tá trazendo, né.
Gislana: é.
Olívia: tem uma coisa do aquecimento, não sei, da temperatura que me chama muito atenção nesse terceiro retrato.
Gislana: e que diz de si, é de um lugar muito, é... diverso. Quando ela fala, porque assim, quando ela fala, quando ela narra lá a roupa que ela está vestindo, que é o biquíni e fala da roupa de oncinha, da paisagem, de oncinha do biquíni dela. Ela assumiu uma outra voz, assim, bem sensual, né? Assim, ela traduz esse momento de sensualidade que eu acho que é um pouco essa dimensão da juventude dela que traz. Uma mulher que vai para a praia de biquíni, que se acha bonita, que está ali querendo mostrar a sua... a boniteza do seu corpo, da sua pele, da sua juventude, eu entendi um pouco esse momento por esse lugar.
Olívia: e essa liberdade também, né, que vem assim ela fala do vento, ela fala da praia, do sol, do calor, né. E ela está ao mesmo tempo no quarto, só que ela pode habitar esse cenário da praia, né. Que é aquilo que a gente também trabalhou e já se trocou um pouco, né, em outro momento, sobre esses... esse horizonte imaginativo, né? Não necessariamente, a gente precisa tirar um retrato, estando. O retrato falado, ele ganha uma liberdade em relação ao lugar onde você está, né, fisicamente, porque ela tá fisicamente no quarto dela, mas a imaginação leva ela pra praia.
Gislana: é.
Olívia: e ela vai pra praia com tudo, com a roupa, com o corpo, com calor, cenário, né, todo.
Gislana: é isso, eu acho que tem essa relação mesmo, da liberdade de poder traduzir a paisagem, a partir do entendimento de que eu quero estar nesse lugar, eu vou pra esse lugar, né. E eu acho, que esse lugar da fantasia mesmo que retratar uma coisa, um lugar, uma pessoa, permite. Eu acho que ela usa isso de modo muito possível e amplo, quando se retrata aí nesse momento.
Olívia: e ao mesmo tempo, eu fico pensando o lugar da fantasia, ele se constrói a partir de uma memória corporal de vivências e experiências, né. A gente só fantasia aquilo que a gente tem elementos pra fantasiar de alguma maneira, né. Então, essa praia habita o corpo dela e ela resgata, retoma esse lugar da memória pra construir esse cenário novamente no agora, né, pra nós. A partir desse retrato falado que ela descreve, narra experiências de praia, que habitam o corpo dela, né, e que ela tá reconstruindo pra gente nesse retrato falado. Fico imaginando um pouco esse cenário da montagem, sabe? Da colagem, da composição de uma cena, a partir dessa... dessa memória assim, daquilo que o corpo traz, né.
Gislana: isso dá um pouco uma dimensão tecnológica, porque nos filmes futuristas, né, a gente sempre vê a coisa da holografia. De como um corpo mesmo não fisicamente pode se deslocar pra outro lugar. Eu acho que ela dá esse retrato holográfico de estar no quarto, está no lugar, e ao mesmo tempo está na praia, onde ela pretende chegar (risos). Acho que é um pouco isso.
[efeito sonoro]
[trilha ao fundo da próxima fala]
Sônia: boa noite, meu nome é Sônia Marche, eu estou chegando de uma seresta, depois de 2 anos quase de pandemia. Está tocando uma música maravilhosa, ‘Chão de estrelas’. Eu sou uma mulher negra, de cor não retinta, de feições finas, meus cabelos são castanhos e estão curtos. Eu estou usando uma roupa preta, uma calça comprida preta de malha, meio pantalona - porque minhas pernas são curtas, eu não posso usar uma pantalona total. E uma blusa preta e por cima pra compor, um casaquinho de mangas largas estampado com várias cores. Eu estou usando um colar com a pedra preta tipo ágata e brincos dourados, e também anéis dourados pra combinar com a roupa. Meu sapato é preto com, com um enfeitizinho dourado. A minha expressão neste momento é de muita alegria, porque eu estou fazendo uma coisa que eu gosto, estou no meio de pessoas maravilhosas. [efeito sonoro] Boa tarde, hoje eu vou fazer uma foto... uma foto que não é muito comum pra mim. Até o sorriso fica distante, quando chega essa época de Natal. Adoro o Natal, é uma festa alegre, de muito amor e eu fico triste só por um motivo: a minha mãe conseguia agregar todos os seus filhos, noras, genros, netos, ao seu redor. E eu, não consigo essa proeza, eu fico triste. Na hora não, na hora eu me alegro com os que estão presentes, os que participam, porque Natal é amor. Mas, o sentimento marca no nosso semblante. Eu não consigo ficar descontraída, não consigo ficar totalmente feliz, com isso. Eu gostaria que fosse diferente. Eu sei que todos os meus filhos me amam, eu amo a todos eles, meus netos, mas não consigo agregá-los, por várias razões. Os três, os três que já são, é... mais do que três, né? Porque são seis, nove, onze, treze de três, são treze. E a gente fica assim, com uma sensação de vazio. A minha sensação hoje no olhar é uma sensação de vazio, gostaria que fosse diferente, que eu pudesse estar mais alegre, escrevendo e falando de mim nesse texto, mas é assim que eu me sinto. [efeito sonoro e trilha ao fundo] Boa tarde. Nesse autorretrato, só vai ficar mesmo marcada o meu contentamento, porque eu vou fazer um autorretrato da minha satisfação, em ter conseguido este ano ainda, preparar a casa pro Natal. Consegui fazer os arranjos, as arrumação que eu queria e ficou assim, a nossa casa ficou muito bonita. Claro, eu tive ajuda do meu genro que é super paciente e bem, e ele tem habilidade pras coisas que eu peço, eu quero isso, ele faz. Então, consegui ter uma sala dividida em arco, eu consegui colocar uma cortina de lamê dourado com, é... com laços vermelhos e fitas e bolas vermelha e dourada, que ficou muito, muito bonito. Dividi o ambiente. Com essa divisão de ambiente, eu fiz um presépio - porque tem que ter presépio no Natal - e meus netos gostam muito do presépio. Fiz um cantinho pra o descanso de Noel, com uma cesta do Papai Noel está descansando, tem muito Papai Noel naquele canto; e fora os arranjos que eu consegui fazer, isso me dá muita satisfação e alegria. Isso, eu fico feliz!
Olívia: gente, o que que é a Sônia, né? (risos).
Gislana: (risos) ela faz uma narrativa muito perceptiva do sentimento dela, né, cê quase pode pegar, né, assim?
Olívia: muito sensível, né? Quando ela traz também no primeiro áudio, quando a gente falou da Nayara, essa impressão que eu tive da Nayara foi do retrato do rosto. Com a Sônia não, ela faz um retrato aonde se vê o corpo todo, porque ela entra!
Gislana: todo.
Olívia: (risos) é... ela entra nesse detalhe.
Gislana: essa meia pantalona (risos), eu fiquei pensando: “o que é isso?”.
Olívia: essa meia pantalona, exatamente.
Gislana: tem a perna curta e tem uma meia pantalona (risos).
Olívia: ela dá uma dimensão da altura, muito precisa, né, quando ela traz esse exemplo da calça com meia pantalona. E a relação que eu acho que ela tem com o corpo dela, nesse lugar de uma, de uma mulher. Primeiro a voz, né, a voz da Sônia é de uma mulher, né, mais velha tem um...
Gislana: ela elegante, a voz dela, né, muito bonita, eu acho.
Olívia: exatamente, a elegância me chama muito a atenção. A elegância na voz, a elegância na roupa, naquilo que ela veste, na descrição que ela faz do colar que ela tá usando, né. Do colar, do brinco, né, e da própria calça, né, da pantalona.
Gislana: é.
Olívia: e ela vai no detalhe do sapato também, por isso que eu fico: Nossa! É uma foto... é um retrato de corpo inteiro.
Gislana: de corpo inteiro, perfeito, isso.
Olívia: muito interessante, né? E a voz da Sônia revela muito pra mim, assim a figura que ela é, nesse lugar da idade, da sabedoria, do jeito, né, da calma também me transmite uma calma.
Gislana: é. Essa segunda foto aí, com essa cortina de lamê, com fita vermelha, eu fiquei imaginando isso (risos). Uma cesta de Papai Noel descansando, que é isso?
Olívia: é, a segunda foto, já traz a gente pra dentro do espaço da casa dela.
Gislana: o ambiente, né, muito detalhe do ambiente, dá vontade de você sair olhando coisa, por coisa.
Olívia: cada detalhe do ambiente exatamente aí, a sala que foi dividida com essa cortina num outro ambiente pra que o presépio teja lá num canto, né e depois.
Gislana: e o Noel teja no outro.
Olívia: isso... a cesta de Papai Noel. É como se a gente entrasse dentro dessa casa, né. Dentro dessa sala e visse esses detalhes da arrumação do espaço, né. O contentamento, ela retrata o contentamento dela, também é bonito como ela traz a paisagem emocional que ela tá, né.
Gislana: é
Olívia: e traz essa figura desse genro, que para mim também aparece nesse retrato, né?
Gislana: essa relação familiar assim, né, de apoio, de.. né?
Olívia: é, de apoio mútuo.
Gislana: de ajuda, acolhimento. Acho que é isso.
Olívia: aí ela fala sobre essa relação de ajuda, né, que eu acho que é muito presente no cotidiano, é... das pessoas com deficiência de forma geral, mas de todas as pessoas, né, essa relação de interdependência, de ajuda, de apoio e como que isso se constrói numa rede de afetos, né. Ela diz, ela diz dele, o quanto que ele tem esse cuidado, né, ele sabe aquilo que ela quer, eu achei muito bonito isso.
Gislana: achei também. Eu acho que retrata muito essa coisa, de uma relação de ajuda como parceria. Não é uma coisa assim pra fazer aquele favor, mas é uma relação parceira, assim, um pensa, um faz, o outro pensa, e o primeiro faz, não sei. Acho que é uma relação de troca mesmo de boa vontade, de fazer coletivo, que eu acho bom demais.
Olívia: é, exatamente. E aí a gente chega nesse outro retrato dela, que traz uma paisagem emocional muito forte, é um retrato de família, né? Um retrato de família, assim, muito preciso. Achei muito bonita a maneira como ela traz, nesse retrato de família, toda a complexidade que é esse lugar da família, né? Das nossas expectativas em relação ao que acontece, a esse momento do Natal, do estar junto. Aí ela traz a memória da família dela, da mãe dela, essa coisa da linhagem, né, assim presente, essa genealogia da família. E ao mesmo tempo uma frustração em relação ao desejo, né, dela aquilo que ela gostaria e aquilo que acontece, né. Que essa frustração não se dá por falta de amor, mas se dá simplesmente, né, porque a vida é complexa e as famílias e as relações são complexas, né. E nem sempre, a gente consegue suprir nossos, nossas expectativas, né, pra aqueles momentos.
Gislana: então, quando ela fala esse negócio, eu tenho a impressão de uma pessoa na janela, olhando a vida, sabia?
Olívia: olha, bonita essa imagem.
Gislana: vendo lá essa paisagem da mãe que fazia isso. Eu me lembro muito, que isso também era uma coisa muito presente na minha casa. E ela faz isso como se tivesse olhando pra janela do tempo. Eu acho isso parecido, gosto muito desse recorte.
Olívia: essa imagem da janela do tempo é tá muito nesse vazio, né. Ela retrata esse vazio, essa janela do tempo e esse vazio, né, que ela traz. Ao meu olhar tá vazio, porque talvez ela teja olhando pra essa janela, aí, né do tempo. Muito bonito esse recorte, esse retrato de família. E aí, como que no retrato falado, né, aparece, pode aparecer essas nuances que talvez tivesse presente de outra maneira, numa imagem fotográfica, não sei, mas é como que são diferentes, né? Eu acho que é mais interessante ressaltar as diferenças, né, não tanto a comparação pra tentar ver o que um supre e o outro não, mas as diferenças, as singularidades de um retrato retrato falado, né, muito bonita essa foto.
Gislana: o retrato falado permite costurar elementos diferentes. O sentimento, a... a questão física, a questão da percepção das coisas, dos elementos que estão construindo aquele retrato. Acho que os elementos, eles ganham uma forma muito escuta ativa, quando você escuta é que você, eles vão desfilando na sua frente. Enquanto que na... numa foto tirada, mesmo quando ela compõe um álbum, né, o álbum ele traz as coisas separadamente. Ele traz aquela foto, a outra foto. E na... nessa foto, é... nesse retrato feito pela sonoridade das palavras, eu acho que você vai costurando os elementos ali no mesmo lugar. É como se você fosse colando parte daquela paisagem que vai construindo aquela foto. Acho que é um pouco isso.
Olívia: eu gostei dessa imagem da costura, Gislana, que você propôs. É bem isso, né, aos poucos. Porque tem uma temporalidade da fala, né? A visão é instantânea, você olhou e viu. A fala ela vai construindo, vai costurando, vai compondo um cenário, pouco a pouco, né, trazendo mais um elemento que é sei lá, cortina, que ela descreve aí, traz mais um elemento, que é o presépio, aí de repente começa a aparecer, né, nessa imagem que a gente vai formando na nossa própria cabeça à medida que ela fala, vai aparecendo esses elementos vão sendo costurados nessa imagem. Muito bonito.
Gislana: é. O Papai Noel descansando... eu fiquei pensando, sabe o que? Os Papai Noel saindo e entrando na cesta pra descansar (risos).
Olívia: ela fala o Papai Noel, depois ela fala vários Papais Noeis, eu fiquei imaginando... (risos).
Gislana: é! (risos). Eu fiquei também, um saindo e o outro entrando... (risos).
Olívia: uma convenção de Papais Noéis! (risos)
Gislana: (risos) de Papai Noel (risos). Fiquei pensando nisso também, uma cestinha cheinha deles, um sai para trabalhar, o outro volta, vai descansar.
Olívia: se revezando, né, tão se revezando. Muito bacana. É uma composição e uma orquestra, né, ao mesmo tempo, assim. Mostrando como que é vivo, como que é vivo.
Gislana: é isso. Vai tudo se, cada um vai assumindo seu lugar nessa paisagem aí.
Olívia: é.
Gislana: vem e coloca, vem e se coloca no seu no seu papel, no seu lugar, no seu, na sua espacialidade sonora. Eu acho que é isso.
Olívia: e aí a diferença, né, de um retrato falado que foca na espacialidade, que é esse da casa dela preparada pro Natal. E o outro, que tá focando muito nesse retrato de uma paisagem interna, né. A emocional do sentimento, né, da subjetividade, mas que traz esse lugar de família, de pertencimento também. Então, assim, são retratos com paisagens muito diferentes, né, muito interessante também essa variação. Então são essas as duas grandes mulheres que a gente convidou pra se retratar, né, nesse programa, Sônia e Nayara.
Gislana: é. E que trazem muito essa relação entre ser jovem, ser velho, não como uma distorção do tempo, mas como uma complementação, o tempo é assim. Ele caminha, ele traz outras experiências, outras falas, outros entendimentos. No fim você vai vendo na fala da Nayara e da Sônia, duas temporalidades de vida colocadas de um modo muito possível. Porque, quando você pensa em retratos da deficiência, você pensa que vai retratar uma condição de tristeza, de sofrimento, de dor. E na verdade, nas duas mulheres retratadas, o que salta dessa foto é a vida, a vida delas, o modo como elas encaram as suas vidas, os seus momentos e a deficiência atravessando isso como uma condição de existência. Mas, não a condição, ou propulsora, ou impeditiva da vida. Eu acho que isso é uma coisa importante pra gente pensar, quando fala em retratos da deficiência.
Olívia: eu acho isso muito importante mesmo, assim, maravilhoso esse comentário. Porque é isso! É parte do que, do que é do dia a dia da vida dessas mulheres, mas não define a existência, não define a experiência, né, não determina é... em termos de identidade, necessariamente, né. Embora também, perpasse isso, mas é isso, é uma é uma condição com a qual se convive, com a qual se vive, né, eu acho também.
Gislana: e que faz parte da diversidade humana. Eu acho que isso pra mim tem sido um mote importante da gente compreender. A deficiência como parte da diversidade humana. Essas pessoas, essas mulheres têm a deficiência nas suas vidas, mas elas têm também outras coisas: a família, a juventude, o envelhecimento, é... o sentimento, a falta, o excesso. Tudo o que as outras pessoas também tem nas suas vidas, eu acho, de outros modos, dos mesmos modos, não sei. Acho que por aí.
Olívia: é. A condição... uma parte do espectro, do que significa ser humano, né? É isso. É uma diversidade, é uma singularidade que entra junto com todas as experiências que qualquer ser humano vai viver, né. Nas relações com família, com amigos, relações de amizade, que se constroem também a partir dessa experiência da deficiência. Novas paisagens se abrem, né, não é só fechamento, eu acho que isso também é muito importante, né. Tem relações que se constroem de convívio, de interdependência, de amizade, de aberturas que se dão a partir dessa, desse elemento da vida, né.
Gislana: é... eu tenho uma questão, em relação a uma, um retrato, a uma imagem, né? É... eu sempre descarto várias, eu nunca quero que a pessoa me envie várias imagens. Porque assim, eu acho que me confunde um pouco, se ela manda uma, e a gente, ela vai me dizendo, ali o que que tá naquela imagem. E aí a gente escolhe uma, pra mim uma é suficiente, tanto que eu não, eu não sou uma acumuladora de fotos (risos). Eu não tenho uma galeria lotada. E aí eu descobri uma coisa também. É... eu faço postagens no Facebook e eu faço postagens de retratos escritos. Eu escrevo coisas que retratam paisagens sonoras. Eu posto pouquíssima foto. No começo, eu ficava incomodada, porque eu via as pessoas postando muitas fotos. E aí, eu ficava pensando que eu tinha alguma coisa errada comigo, porque que eu, não tinha uma foto ali pra colocar. Aí depois, eu compreendi que quando eu escrevo e posto lá, de algum modo, o que eu tô postando, é um retrato escrito daquilo que eu tô pensando. Não é uma imagem fotografada especificamente com um corpo, mas é uma imagem fotografada do, da ideia. Eu penso isso. Quando eu leio lá as minhas postagens, eu acho que as pessoas, elas respondem muito as postagens que eu faço, elas mandam uma mensagem, e dizem o que elas pensam. E eu acho que de algum modo elas veem, o que eu tô pensando.
Olívia: isso é interessante Gislana, porque é também traz muito, é... o quanto que a gente registra através desses suportes, né, esse suporte que pode ser a fotografia, mas o quanto a gente retém daquilo que a gente registrou? Daquilo que a gente fotografou? Quando você traz essa questão do excesso, né, porque eu acho que a gente vive, né, num mundo que tá muito pautado por essa, essa lógica, esse regime do visual, né, tudo é imagem, tudo é foto, selfie, né, tudo...
Gislana: uhum.
Olívia: a gente vê um excesso de imagens aí circulando, né. Cê deu esse exemplo no Facebook, as pessoas estão botando um monte de imagem. Mas, o que que fica, né, quando a gente registra? O que que nos leva a registrar uma cena, né? E aí você tá trazendo, justamente, que pra você, você traz essas palavras, né, daquilo que você registrou, que isso de alguma maneira é trazer a sua experiência, né. Trazer pra sua consciência também um pouco mais daquela experiência, né, daquela cena. E aí, esse suporte que a gente vai usar para registrar, ele pode ser múltiplo, né. Eu acho que um pouco essa motivação, né, desse podcast que a gente também faz é ampliar essas formas de registro, né. A partir dessas corporalidades singulares das mulheres com deficiência visual, mulheres cegas, com baixa visão. Nos convidam a pensar um pouco sobre isso, né. O registro ele, ele não precisa ser só fotográfico, a gente tem muitas maneiras de registrar uma experiência e de uma maneira que ela fique marcada, né. Como é que a gente se deixa afetar, então, por aquele momento e coleta. Eu fico pensando um pouco nesse, nessa ideia de fazer uma coleção, né, um álbum de retrato, como é que a gente pode coletar, né, as nossas experiências?
Gislana: eu fui pra um curso sobre museu e tinha um quadro que eu até já vi quando enxergava mais no MASP - Museu de Arte de São Paulo. Que é um quadro que retrata uma mulher negra, com uma criança branca no colo, uma mulher de pele mais clara ao lado dela e um homem branco atrás das duas, né. Eu tinha visto essa foto e vi essa, é uma é um, quadro de um pintor não lembro como é o nome. E aí eu fiz um curso e o professor, que era um homem negro, que veio falar sobre essa questão da negritude, da ancestralidade... ele leu o quadro e nunca mais eu esqueci esse quadro, ele tá na minha cabeça. A mulher negra era a mulher que veio de África, por isso ela se vestia, e aí ele vai descrevendo a roupa dela. Ela tá de turbante, de pé descalço com a criança no colo. A criança é o neto, é filho desses dois que estão com ela, a filha de pele mais clara, que já é uma filha afrodescendente mais clara, mas mestiça, digamos assim, calçada, sem o turbante na cabeça, com outras características. O homem é um homem branco, né, o homem que tá atrás, que acreditamos que é o pai da criança, que tá segurando assim no ombro das duas assim, e a criança é de pele clara, de cabelo crespo e nua, né. Assim ele foi construindo uma trajetória dessa imagem, sabe, eu fiquei pensando assim: como uma imagem pode dizer tantas coisas pra gente? A primeira vez que eu vi isso num museu, eu não tinha nenhuma noção, embora o quadro tenha lá um nome que possa dar esse indicativo, a partir da leitura dele, eu comecei a perceber outras nuances dessa questão de raça, exposto naquele quadro. Aí eu fico pensando também, que, que a leitura do mundo também das imagens, como uma descrição narrativa daquela imagem, ela também propõem coisas pra gente, né?
Olívia: isso é algo que é muito forte na experiência de quem vai narrar, descrever... a minha experiência pelo menos, né, não sei se na de todo mundo. Mas sempre que eu vou fazer esse exercício de descrever uma imagem pra uma amiga, pra uma pessoa que não enxerga, né, pra uma pessoa que não enxerga com os olhos. Então, isso me convida adentrar naquela imagem de uma maneira que eu não necessariamente faria, se eu tivesse só me relacionando visualmente com ela, assim. Esse lugar da narrativa mesmo que você traz, sabe? Ao narrar uma imagem, eu consigo aprofundar e descobrir coisas, às vezes inclusive ver coisas na imagem, que eu não estava vendo antes, que eu não estava percebendo antes. Em função justamente desse lugar de pausar e dizer, né, e encontrar formas de dizer aquilo, mesmo que não que seja uma forma descritiva, o mais isenta possível e objetiva, né. Que a gente vai buscando também refinar um pouco essa forma de narrar e dizer algumas situações, pedem uma descrição mais objetiva, outras pedem uma descrição mais poética. Tem muitas maneiras de narrar, né? Mas de qualquer forma essa experiência de descrever e narrar imagens, ela é muito rica no sentido de ampliar as nossas formas de ver mesmo, sabe? Acho que tem esse ponto da troca, da reciprocidade que acontece na relação entre visão e cegueira, que isso não pode ser pensado como uma via de mão única, né. Que às vezes se pensa, um pouco essa técnica para pessoas que não enxergam ou para pessoas cegas, pessoas que enxergam fazendo algo para os outros e não é, né, na verdade...
Gislana: não é.
Olívia: é um convite pra gente adentrar e mergulhar cada vez mais a nossa experiência de ver, né. É isso que a cegueira também nos oferece nessa relação, né. É bonito isso, porque é um campo em que a gente também precisa aprofundar os nossos modos de olhar e a gente se dá conta do quanto que a visão não tá dada! Ela não é a mesma pra todas as pessoas, né, também. Então acho que isso é algo que se revela nesse encontro, né, entre visão e cegueira.
Gislana: eu acho, eu acho, que essa questão dos retratos que cada pessoa faz, ou que narra - mesmo entre as pessoas que narram isso, a partir da sua, do seu entendimento e da sua visualidade - eles vão é... dimensionando aspectos que às vezes... uma pessoa fala pra mim, no grupo de mulheres cegas, ela conta uma história sobre a vida. Aí ela fala aspectos daquilo ali, quando ela fala, ela tá descrevendo o que ela vê; e quando eu ouço, eu entendo, o que eu compreendo, a partir da cultura, do lugar que eu ocupo, porque vê não é uma coisa que tá resolvido só pela imagem. Então, um retrato de uma situação, de uma coisa, de um momento, de um lugar, ele, ele traz essa dimensão mais ampla de ver, com outros sentidos, com outros aspectos. A pessoa me conta uma história, e aí eu fico vendo do meu jeito, que ela tá me contando do jeito dela, porque ela vê daquele jeito do lugar que ela ocupa, mas vê é... retratar, também traz pra gente essa dimensão do lugar que a gente ocupa, né, não?
Olívia: exatamente, né, e o quanto que a gente pode, né, abrir essa dimensão tão rica da memória, da experiência e do registro, né, como uma forma estética de experimentação mesmo com esses outros modos sensoriais de dizer uma experiência ou de relatar ou de compor um registro, né. Que é o que a gente está propondo aqui, mas que eu acho que associa - aí eu quero abrir uma outra chave, né, pra nossa conversa - que é associar essa dimensão estética, né, com os compromissos éticos e políticos na discussão, na conversa com pessoas com deficiência. Porque, o que a gente tá fazendo aqui, tem uma dimensão estética importante, que a gente ampliar, né, as nossas formas de registro. Um retrato, ele pode ser um retrato falado, ele não precisa ser uma fotografia, não precisa ser uma imagem visual, né. E isso importa sim para as pessoas com deficiência e para as pessoas em geral, porque tem um efeito também político, né. Tem um efeito ético também, né, de que é considerar essas múltiplas corporalidades, como corporalidades produtoras de processo... de poéticas, né, de poéticas de campos de estética, de linguagem também. Eu acho que tem esse ponto importante, quando você traz, né, de registrar a experiência pela fala, pela escrita, traz essa dimensão também dos modos de dizer. Tem um efeito, né, nesse campo político também, que eu acho que vale a pena a gente também comentar sobre isso, né.
Gislana: eu acho que essa questão da fotografia falada, ela também desvela os territórios que você habita, porque a impressão que eu tenho, é que as pessoas que enxergam, né, que são enxergantes, elas perdem a dimensão de que uma pessoa não enxergante também ocupa um território. É como se o seu território não existisse. Então, ela se apossa do seu corpo, se apossa do seu entendimento, prever o que você quer, muitas vezes é, essa dimensão do não território pela não visualidade normativa, eu acho que também é um lugar é que as pessoas ocupam demais. É como se, porque você não enxergasse, do modo normativo com os olhos, ali, colocados em alguma coisa, você não percebesse. Eu fiquei muito com essa impressão. A medida que eu convivo com pessoas, principalmente, quem não têm contato com pessoas que tenham algum tipo de deficiência ou mesmo a deficiência visual. É como se a pessoa quisesse lhe antecipar, a sua territorialidade, sabe, assim puxar a cadeira, senta você, empurra você pra atravessar. E eu acho que isso é um pouco essa dimensão que o enxergamento normativo, retira do enxergamento de outros sentidos e de outros modos, essa antecipação. Antigamente, as fotos, elas tinham é um negativo, que era um registro pra depois virar uma imagem quando ela fosse revelada. Então é como se a pessoa enxergante, ela tivesse um negativo da sua foto, antes de você até pensar que foto você vai fazer. É como se elas se antecipassem aquilo que vai acontecer. Como é que antecipa, se você não sabe? Que, que atitude, que lugar esse corpo vai ocupar? Como é que você já pode é... prever que ele vai sentar, que ele vai se levantar, que ele vai bater, que ele vai não sei que? Como é que você pensa isso? Acho que também esse conceito de antecipação é que quem enxerga faz sobre quem não enxerga, pra mim traz muito esse, essa dimensão do não reconhecimento de outras possibilidades sensoriais, eu acho.
Olívia: isso me toca, assim, né, porque tem o ponto que, a visualidade, né, como é que ela funciona essa questão da antecipação, né. A visão ela antecipa, mas ela não te permite, nessa antecipação não te permite perceber justamente o todo da experiência, né. Você só filtra por um canal, que é um canal da distância mesmo, eu tô, eu, consigo enxergar à distância, né? Então, de certa maneira, antes que me toque, antes que me afete, eu já tô prevendo ou projetando o que vai acontecer. E aí, o quanto que a gente é... acaba não vivenciando as experiências, né, por essa antecipação. É algo que você tá trazendo, né, assim enquanto que as pessoas que enxergam acabam numa prepotência da visualidade, né, não permitindo elas próprias, não só - é claro, que isso também tem um efeito na relação, que é esse que você traz, né, que é de você projetar no outro uma incapacidade, né, que eu acho que também é muito grave, né - mas também, também é se privar de viver a experiência de um outro lugar, né? Que é justamente permitir que as coisas cheguem, né, que você experimente através do de outro desse outro corpo, desse corpo sensorial que também você possui, né, e que pode vivenciar os acontecimentos acionando outros canais, né. O canal da audição, o canal do tato, o canal de ser tocado, né, de se permitir, ser afetado também, que um pouco essa dinâmica, né, da nossa corporalidade tátil que não tá só nas mãos, tá no corpo inteiro, né. Então acho, que tem uma coisa muito interessante aí desse, nesse lugar da relação, né. Primeiro, claro, do predomínio da visão nas nossas relações cotidianas, que faz com que as pessoas que enxergam se pensem de um, de um num lugar hierarquicamente superior, e isso é um problema, né, que a gente precisa realmente tratar na relação entre visão e cegueira; e também, essa outra, essa outra questão que é o quanto se perde das experiências, ao se apoiar tanto num único canal, né, que é essa visualidade.
Gislana: a descrição pra mim, da autodescrição, ela tem a característica de atender a muitos públicos, e ela tem uma dimensão de ter diferenças dependendo de pra quem, do lugar, do ambiente, do que você tá querendo é... que as pessoas entendam, a partir da sua fala. Eu sempre procuro fazer essa paisagem descritiva de mim, porque eu não sou uma, são muitas. Todas as pessoas somos muitas, então, acho que a gente ficar fazendo aquele monólogo de: eu sou fulana, que faço isso, que digo aquilo, acho que é um pouco reducionista pra quem tá ouvindo e pra quem tá dizendo. Acho que autodescrição é um lugar informativo interessantíssimo, acho que é o lugar da criatividade que é uma coisa que eu tenho me perguntado é sobre, o que é a subjetividade nisso que a gente faz? Porque, eu acho também que a audiodescrição, ela precisa discutir mais profundamente a subjetividade do que ela faz. Acho que é importante rever essa dimensão da subjetividade: eu descrevo e ponto! Não. Eu descrevo, e aí? O que que acontece?
Olívia: existem outras maneiras, né, de criar acesso que podem não ser por esse canal da linguagem. Acho que tem um elemento aí que é interessante também da gente pensar, né, do quanto que é que a gente utiliza um canal sensorial que é a audição, que é o que você e o que a gente tem em comum, entre pessoas que enxergam e pessoas cegas. Então, você vai por esse canal que é uma via que, né, de alguma maneira é mais fácil digamos assim, né. Facilita pra quem enxerga, de alguma forma, mas como é que seria, se deslocar desse lugar de conforto, sabe? Sair de um canal sensorial comum pra tentar ampliar os modos de acesso, abrindo possibilidades de vivências, de experiências que não necessariamente, pessoas que enxergam dominam.
Gislana: com palavras, né?
Olívia: com palavras, exatamente. Então, como é que a descrição que eu faço, afeta o público para o qual eu tô me dirigindo, né? Como é que afeta essas pessoas, como é que chega e como é que me afeta, afeta a mim mesma? Porque, eu acho que também é esse exercício, né, de também se se ouvir, a partir daquilo que se descreve, ouvir áudio de outras pessoas, sem necessariamente tá vendo.
Gislana: a Convenção e a LBI, elas falam muito dessa retirada da deficiência como uma questão da pessoa para uma questão social, do meio das barreiras. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que isso também desconfigura uma dimensão de que... eu tenho uma deficiência. A deficiência, ela também é minha. Ela é da sociedade pra encaminhar questões é... de possibilidades pra eu conviver com a diferença nesse mundo tão normativo e tão igual. Mas, eu também tenho uma deficiência, a deficiência também, ela é minha, ela é do meu lugar. Ela não pode tá sendo negada por mim, como se, só as barreiras dessem conta, com a sua retirada de resolver a deficiência, não resolve. Porque também, existe uma coisa na corporalidade de cada pessoa, que são soluções possíveis de cada um pra sua convivência com o meio. Eu acho que também, a gente precisa pensar um pouco desse lugar, do lugar, o lugar social pra mim, ele é fundamental. Resolver a barreira, resolver e trazer a questão da diferença e da diversidade por um que só se percebe de um lugar é fundamental. Mas também é importante, que eu compreenda a singularidade da deficiência de cada pessoa, por que que eu tô dizendo isso? Porque eu convivi, durante esses dias, com pessoas que tem outras que não é a minha deficiência, tem outras singularidades, pra resolver as suas questões. E tem outros elementos que entram na construção da sua deficiência, que não estão na minha e que a minha tem também elementos diferentes. Aquilo que é um impeditivo da própria deficiência de cada pessoa, pode não ser um impeditivo de outra pessoa sabe? Então, por isso que, essa própria dimensão é... do retrato da deficiência, de retratar a deficiência a partir de uma determinada pessoa, ela é um instantâneo daquele lugar, daquela vida, daquela cultura, daquela dimensão que aquela pessoa tem. Mas ela não representa a dimensão de todas as pessoas com deficiência: mulheres cegas, baixa visão que tem a condição dentro desse segmento, mas que não são únicas, e as questões não são iguais. Porque também eu vejo muito, a gente saindo de uma normatividade específica, o corpo normativo e entra noutra normatividade, que é o corpo com deficiência é tudo igual. Se é cega é tudo igual, se é baixa visão é tudo igual. E aí você vai tratar as diversidades dentro de uma unidade. Eu acho que isso também precisa ser revisto. Você não tira uma referência de normativo de um lugar e aplica no outro a partir de um determinado elemento. A não visão ou não enxergamento pelo corpo físico, pelos olhos digamos, entendeu? Então, eu fiquei muito percebendo isso, porque mesmo entre nós, pessoas com deficiência, essa dimensão é de que a deficiência, que tem singularidade em cada pessoa, às vezes, a gente perde. A gente quer que a pessoa reaja a determinadas situações, do mesmo modo que eu que tem uma cultura, que tem uma dimensão humana de características pessoais diferentes, reajo. Isso não funciona. Não é assim, que se dá essa dimensão de tirar a normatividade de um lugar e aplicar na deficiência uma normatividade também para um coletivo de pessoas que têm uma deficiência, pensarem, viverem e enfrentarem as questões do mesmo modo, acho que isso não é interessante. É necessário, que a gente também, entre nós, que temos a deficiência, a gente se perceba desse lugar da diversidade e da diferença. Da singularidade de cada uma, sabe, acho que é importante isso.
Olívia: ficha técnica, duo-cocriativo Olívia von der Weid e Gislana Vale. Mulheres retratadas: Nayara Santos e Sônia Marcha. Edição de áudio: Ana Lu Mendes.
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Olga Aureliano: O roteiro e gravação é de Olivia von der Weid e Gislana Monte, cocriadoras deste episódio. A finalização e vinheta é de Rodrigo Policarpo e a transcrição é minha, com revisão de Bruna Teixeira e tradução de Deise Medina. São pesquisadoras do Projeto Retratos Defiças: Nádia Meinerz e Pamela Block, e atua comigo na produção local, Vanessa Malta. É isso, gente. Chegamos ao fim dessa temporada marcada por incríveis cocriações defiças. Muito obrigada por acompanharem nosso canal, e as atualizações do nosso site e nossas redes. Todas nós da ONG Ateliê Ambrosina e da Universidade Western do Canadá, agradecemos a participação dos duos cocriativos. E em nome de toda a equipe, desejamos que 2022 conte uma nova história para o nosso país, uma história positiva, e cheia de oportunidades para nós, defiças, e para o nosso povo brasileiro. Até a próxima!
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